A Confissão de Matvei

Introversões exteriorizadas.

22 agosto 2005

Eesti, Parte I, Tartu, 20-7-2005

A deslocação até tartu obrigou a uma vigorosa empreitada, uma vez que a transposição da fronteira enferma de inúmeros obstáculos. Ainda em Césis, tentei aferir da possibilidade de fazer a ligação por comboio, o que proporcionou o caricato episódio de apenas me ter conseguido fazer compreender com um sonoro "Puu!... Puu!...". Como o "Puu... Puu..." mais adequado nos deixaria numa estação nada conveniente no mapa e apenas circulava uma vez por dia, decidimos investigar outras hipóteses. Verificamos que, a partir de Césis, não há transporte directo para a Estónia. A hipótese mais viável, e que decidimos concretizar, aconselhava a ligação de autocarro até Valmiera e, posteriormente, de Valmiera até à fronteiriça Valga, transpondo a fronteira a pé até Valka, na Estónia, e, então, seguindo de autocarro até Tartu. Pode parecer complicado mas não foi. Tudo decorreu como planeado. Valga e Valka são duas cidades em uma, separadas pela fronteira que divide a Letónia da Estónia. O único senão do percurso foi a caminhada de 5 km, necessária à transposição do rigoroso posto fronteiriço.
Já em Tartu, um pouco desorientados pelo cansaço e pelo desconhecimento da cidade, pedimos a direcção do hotel a um russo que involuntariamente nos indicou o sentido oposto ao correcto. Este, apercebendo-se do erro, procurou-nos e fez questão de nos acompanhar durante cerca de 20 minutos, levando-nos exactamente à porta do almejado destino. Impressionou o voluntarismo altruísta. Impressionou, também, a comicidade do diálogo estabelecido, de um lado em russo, do outro lado em português, dado que sorridente Sergei (penso que era assim que se chamava) não falava sequer uma pitada de inglês.
O ex libris de Tartu é a sua universidade, fundada em 1632. A predominância cultural da cidade sobressai de entre todas as suas outras peculiaridades. Abundam esculpturas memorizando cientistas e, sobretudo, escritores. Destaque para a estátua que retrata uma conversa imaginária entre dois Wildes - Oscar, irlandês, e Eduard, estoniano (... e a minha surpreendida Ju, na fotografia) - sobranceira a uma antiga tipografia fundada por outro Wilde, Peter Ernst, num sedutor edifício que actualmente alberga uma livraria, um café e um bar.
Evidencio, ainda, a galeria de arte Kivisilla, instalada num edifício art nouveu , tombado a la torre de Pisa, as ruínas da catedral e a Igreja de São João (v.d. foto à direita).
Durante o passeio pela cidade, fomos encontrando tempo para tentar alugar um automóvel que, no dia seguinte, nos transportasse até ao Parque Nacional de Laheema, no norte da Estónia. A primeira empresa da lista tinha fechado portas; a segunda da lista apenas tinha disponível um Toyota Corolla a preço exorbitante; a terceira empresa, curiosamente, também só possuia um Toyota Corolla... fiquei desconfiado... mas como o preço inicial estava reduzido a metade... lá me convenceu.
Entretanto, uma caixa multibanco engoliu-me um cartão e nunca mais o regurgitou.
O jantar foi cozinhado pela Ju no fantástico e económico apartamento do Narva Mnt, gerido por estudantes. O sono foi justo. O dia seguinte seria conduzido pelas estradas que, de sul a norte, atravessam a Estónia.

19 agosto 2005

Latvija, Parte V, Césis, 19-7-2005

Early, as always... empacotamos uma vez mais as mochilas. Desta feita, em direcção a Césis. Decidimos utilizar o comboio. Na plataforma da estação, cruzamo-nos com uma míriade de vagões de petróleo que durante largos minutos cruzaram a linha. A água suja do noveau imperialismo russo desfilava em quilómetros de crude...
A viagem, apesar do cansaço, foi entretida... as always - era um bom cansaço.... de satisfação e conforto. A minha companheira resolveu ensaiar uns números circenses, com a intenção (aliás, bem sucedida), de me embaraçar perante os demais passageiros. Diga-se, em salvaguarda da minha honra, que levou troco.
A impressão inicial de Césis não foi deslumbrante. Aparentou tratar-se de uma cidade ruidosa e desorganizada. Essa imagem foi-se dissipando à medida que nos aventuramos pelo seu coração. Césis fervilha em torno do castelo parcialmente retratado na fotografia que ilustra estas linhas. Remonta ao Século XIII e pertence à Ordem Livoniana. A Igreja de S. João e o monumento à vitória, que homenageia os combatentes pela liberdade, completam a identidade histórica da cidade.
Contrariando a inicial aparência, Césis veio a revelar-se uma cidade tranquila e extraordinariamente agradável. Aqui aproveitamos para retemperar o corpo, que já vinha sentindo dificuldades em acompanhar a nossa determinação de calcorrear ruas e ruelas. Namorando em bancos de jardim, ocupamos o dia sussurrando palavras sentidas. Sentíamo-nos... e não nos sentíamos turistas.

Latvija, Parte IV, Sigulda, 18-7-2005

O percurso matinal de ligação entre Riga e Sigulda foi feito de autocarro. O sono foi interrompendo a apreensão dos recortes paisagísticos mas não impediu a percepção da predominância rural e naturalista do país. Á excepção da metropolitana Riga, cidade de gigantescas proporções, a Letónia compreende pequenas cidades de verdejante implantação. De reduzida densidade populacional e desafectadas da monstruosidade urbana. Esta constatação é confirmada pelos dados demográcicos, uma vez que a capital, com 800.000 habitantes, concentra 35% da população do país. Sigulda, na região de Vidzeme, é uma das principais e emblemáticas cidades da Letónia. No entanto, com apenas 10.000 habitantes, tem a dimensão de uma pequena aldeia. Pequena mas pitoresca, com 800 anos de rica herança histórica. A norte da cidade estão alicerçados dois castelos, denominados por novo (v.d. foto supra) e velho, este em rúínas. O Parque Nacional de Gauja circunda a cidade e preenche a essência de região de Vidzeme. A exploração do parque aconselhava o aluguer de bicicletas. Assim fizemos. Embrenhamos por montes e vales, pedalando sobre as adversidades do percurso. Admiramos a caverna de Gutman e surpreendemo-nos com um tenor que, isolado, exercitava a voz no interior do bosque. O Castelo de Turaida (v.d. foto) foi uma descoberta admirável. O parque que o envolvia estava pejado de imponentes esculturas em pedra. Os momentos de contemplação e introspecção aí vividos tão cedo não se apagarão da minha memória. Ficou vincada a constatação de que a evolução e o desenvolvimento devem, prioritariamente, proporcionar a qualidade de vida que aí experimentamos. As preocupações ecológicas devem sobrepor-se a todos os outros interesses, permitindo uma progressivo regresso evolucionista que permita um simbiótico relacionamento do homem com a natureza. Por mais óbvia que esta conclusão possa parecer, a realidade lusitana é dela bem distinta.

05 agosto 2005

Latvija, Parte III, Bauska, 17-7-2005

Esta foi talvez a etapa de maior comicidade. Teve início na Autoosta, estação de autocarros. De bilhetes na mão, adquiridos na véspera, deparamo-nos com a pontual chegada à plataforma 10 de... uma idosa e exígua ford transit. Amarela. Facilmente constatei que dispunha de 15 lugares. Com menos dificuldade ainda verifiquei que mais de uma vintena de candidatos a passageiros se atropelavam até à porta de entrada. Mirei apreensivamente o Planeta Ju. Nisto, o respectivo chauffeur debitou uma série de acordes em imperceptível dialécto. Pela cadência dos sons, e porque alguns dos candidatos furavam o aglomerado, ocupando o interior do veículo, tive a felicidade de presumir que os acordes se referiam aos números inscritos nos bilhetes vendidos, dois dos quais tinha na mão. Desta sorte, e após vários "com licença, desculpe, não se importa de sair da frente, excuse me, please, obrigado", e sem atropelar ninguém mas com algumas cotoveladas... lá conseguimos entrar. Coisa que outros não conseguiram fazer. A viajem não era longa. Talvez por isso sobrevivemos. E chegamos a Bauska. A cidade é pouco maior do que a Ford Transit. Mas muito agradável. Arborizada. Ladeada por dois braços de rio. O Castelo, em reconstrução, oferece frequentes festivais de folclore e uma superior visão sobre uma admirável paisagem de frondosa e densa florestação. Enquanto almoçavamos num banco de jardim, fui interpelado por uma jovem que, nos pulsos, trazia cravadas marcas visíveis de várias tentativas frustradas de suicídio. A conversação, acreditem, não foi frutuosa. Ia ouvindo o letão. Respondendo o português. Despediu-se apalpando-me a perna e exibindo-me os seios. Este não foi, porém, o momento de melhor disposição. Esse estava ainda por vir. E chegou na forma de um autocarro. Pretendiamos visitar o Pils Rundale (v.d foto), a 11 km de Bauska. Compramos bilhetes e a cena da manhã voltou a repetir-se. Desta feita, estavamos mais experientes. Mas não estavamos certamente à espera de demorar 1h50m(!) a cumprir o mero trajecto de 11 kms. Não, não estavamos; vos asseguro! Mas foi o que aconteceu. O malfazejo autocarro serpenteou campos e vales em estradas de gravilha perante o nosso desespero que se foi diluindo em riso, graças, sobretudo, ao entretenimento proporcionado por quem entrava, vindo sabe-se lá de onde, ou do nada, com sacos de batata, baldes de fruta e sei lá mais o quê. Mas valeu a Pena. Porque o Palácio é monumental. O exterior é grandioso. O interior é luxuoso. Os jardins, de enorme extensão, são de estilo inglês. Geométricos. Foi mandado erigir pela czarina Catarina II que o presenteou a um amante (um dos muitos... dizem por lá). Várias horas depois, decidimos que o autocarro não era opção para o regresso. Havia lido no Let's Go que a requisição de boleia se assinalava com a mão estendida. Desconfiado, optei por escrivinhar Bauska numa folha de papel. Fomos recolhidos por um VW Polo, vermelho, conduzido por uma senhora que ostentava um dente em ouro. A empatia linguística foi nula. O percurso foi cumprido em silêncio. Com recurso a linguagem não verbal, conseguimos assinalar à simpática samaritana o local de saída. O retorno de Bauska a Riga, por seu turno, decorreu em espantosa normalidade. Na capital, aproveitamos, ainda, para conhecer lugares novos e para experimentar cozinha japonesa. Não recomendo. No dia seguinte, viriamos a deixar Riga, prosseguindo o périplo delineado.

02 agosto 2005

Latvija, Parte II, Riga, 16-7-2005

A primeira manhã foi antecipada pela ansiedade de envereder pelo novo. O despertar foi fácil às 8 locais (6 lusitanas...). O Sol florescia a alma.
O percurso pedonal - que em 15 minutos no colocou na Viecriga - foi de surpresa. A cada rua, cada esquina, um motivo de contemplação... objectivado pela oferenda do Planeta Ju, uma HP digital / 5.3 megapixels!
Como nunca me havia dedicado à fotografia, cometi o exagero de disparar a tudo o que mexia e, sobretudo, ao que estava imóvel e permitia uma mais fácil experimentação.
Ainda a manhã se espreguiçava, aproveitei para aliviar a farta e incomodativa cabeleira que trouxe de casa. Larguei os caracóis num colorido e luminoso salão instalado na zona medieval. Malogradamente, à data não conhecia sequer uma palavra em letão, nem a simpátia cabeleireira conhecia as linguas de Camões e Shakespeare. O resultado foi um embaraçoso penteado James Dean's style.
Rumo à Igreja de S. Pedro, mergulhei o busto em redentora pia do café mais próximo e adoptei um estilo mais próprio.
A sobredita igreja, de espectacularidade singular (v.d. foto), beneficia da particularidade de ter sido destruída na II Guerra Mundial, consecutivamente, por alemães e soviéticos. Hoje, restaurada, permite uma admirável visão da capital do báltico.
A deambulação pela Viecriga foi bem interrompida por um retemperador passeio de barco ao longo do rio Daugava.
A singularidade das gentes e a colorida diversidade dos monumentos e edifícios, de cunho alemão, escandinavo e russo, preencheram o dia; Que não é curto; A noite contempla uma simples meia dúzia de horas.
O jantar foi medievalmente servido, em claustros de pedra e madeira e pratos em barro. Banquete real...
Á medida que a lua se aproximava, chegavam também as letãs. Verdeiras obras de arte, bonecas de porcelana. Vinham dançar para as ruas... e seduzir os bifes.
O dia seguinte estava já perto e transportar-nos-ia a Bauska... e ao Pils Rundale...

01 agosto 2005

Latvija, Parte I, Riga,15-07-2005

Foi muita a atribulação que precedeu a partida. Um oportuno diagnóstico e antibiótico para 14 dias permitiram ultrapassar uma lesão na perna que teimou em turvar os metódicos trabalhos preparativos da viagem.
Nas asas de um comum desejo de conhecer diferentes realidades, voei, com a Ju, até Riga. O 22A transportou-nos do aeroporto até à Catedral Ortodoxa. Com as mochilas às costas e um mapa na mão, calcorreamos ielas emolduradas pelas embaixadas ocidentais, albergadas em edifícios de secular imponência. O destino inicial foi o Lenz hostel.
Aliviados da (pouca) bagagem, enveredamos pelo coração da cidade até à Doma Laukums, ampla praça epicentro da velha Riga (Viecriga). O jantar foi aí celebrado com som e dança, oferenda de um curioso agrupamento de músicos latinos que enrubecia as esbeltas noctívagas letãs. Encerramos a noite com chá, em exótico ambiente oriental proporcionado pela Baudiet Nesteidzoties!. O sentimento era de conforto e de sofreguidão pelo que estaria ainda por acontecer...